Existem diversas histórias em uma em "Adeus, minha concubina". Primeiramente, e como fio condutor do filme, temos a relação (de uma vida toda) entre os protagonistas da peça, Douzi e Shitou. Da infância roubada ao reconhecimento na maturidade. Do sucesso e fama ao desgaste do relacionamento e eventual derrocada. Tudo isso acontecendo à luz da China do século XX, período mais transformador da história moderna do país.
A saber, "Adeus, minha concubina" ( 霸王别姬 ) é uma peça da opera tradicional chinesa de Pequim, escrita por volta do início do século XX. Neste tipo de opera, os atores que interpretam certos papéis (como por exemplo, os papéis femininos, denominados "dan") são definidos e atribuídos desde muito cedo em suas carreiras, sem possibilidade de troca. Pelo alto nível técnico e perfeição com que são interpretadas as personagens, esta torna-se uma "escolha" para a vida toda. Sendo assim, uma vida de intenso treinamento é dedicada na busca pela perfeição em cena.
Douzi é um garoto sensível e delicado que é abandonado pela mãe, uma prostituta incapaz de sustentá-lo. Ela o entrega para a companhia de teatro do mestre Guan, constituída inteiramente por meninos órfãos. A violência e crueldade são marcas registradas de Guan, um facínora que disciplina as crianças com mão de ferro, tornando o treinamento em verdadeiras sessões de tortura física e psicológicas.
Uma segunda leitura a fazer é a relação entre os dois atores. Douzi é homossexual, e se apaixona por Shitou que, confuso, tem dificuldades em lidar com o afeto de seu irmão de palco, como ele mesmo o rotula. A forma como Shitou tenta manejar o relacionamento - ora se esquivando de maneira alienada, ora confrontando em tom insensível - é algo que permeará a relação durante toda sua história. A ironia, um tanto perversa, recai no fato de que a mesma sociedade que impôs a Douzi a condição de retratar certos papéis femininos, não aceita sua sexualidade abertamente.
Ironia trágica também é a história de vida de Leslie Cheung, que interpreta Douzi. Ator e musicista de enorme popularidade em sua terra natal Hong Kong. Apesar do reconhecimento e sucesso comercial, em sua vida privada Cheung - abertamente gay - viveu às sombras de uma sociedade que o estigmatizou, o motivando a buscar uma carreira internacional que infelizmente não decolou. Esquecido e deprimido, Cheung cometeu suicídio em 2003, aos 46 anos.
Fica aqui nossa homenagem para Cheung, que precisa ser reconhecido não apenas por seu enorme talento e carisma, mas também, como alguém de uma coragem extraordinária. Um ser humano a frente do seu tempo, que através de seus papéis no cinema, abriu caminho para a discussão e os avanços da causa LGBTQI+ em toda a Ásia.