A China é uma das sociedades mais centradas na família que existem. A importância da família se reflete principalmente na língua e na forma como membros da família são chamados de acordo com idade, gênero e outros fatores.
Para entender a complexidade do sistema familiar chinês, vamos direto às suas raizes: o sistema de crenças chamado Confucionismo.
Propagadas por séculos por seus discípulos, as ideias de Confúcio eram baseadas nas ideias de virtues 伦理, e de acordo com o mestre antigo, a família é a base da organização social. No confucionismo, hierarquia dentro da família é importante para a criação da harmonia entre os membros.
Antigamente, era comum (e ideal) que várias gerações da mesma família morassem juntas, em casas que eram organizadas nas bordas de um pátio compartilhado. Uma estrutura clássica chamada de Sihe Yuan 四合院. Nesse lugar, moravam todos: pais, filhos, tios, tias, primos, primas e avós.
Com tanta gente em um lugar só, as relações de quem vivia nesse grande pátio compartilhado giravam em torno do conceito de Piedade Filial, Xiao 孝. Faz parte das virtudes chinesas o respeito aos membros mais velhos da família, respeitando suas decisões e suas vontades. A harmonia de todos os viventes do Sihe Yuan era mantida pela dinâmica de poder e influência dos membros da família.
A ênfase confucionista na hierarquia e nos papéis dos membros antigos da famiília influenciou a língua chinesa e a forma como um(a) filho(a) chama seus familiares.
Como as relações familiares são laços essenciais, não é surpresa saber que a forma de se referir a diferentes membros da família também é complexa.
Em português, apesar de levarmos em consideração tanto gerações quanto gênero para na forma como nos direcionamos a membros da família, não existe muita diferença nas palavras.
Por exemplo:
"Tia" é como nos referimos às toda e qualquer irmã das nossas mães e também à toda e qualquer irmã dos nossos pais. Na frase "eu tenho um(a) tio(a)", a palavra "tio(a)" traz uma informação simples sobre a pessoa: irmão ou irmã de um dos nossos pais, qualquer um dos dois.
Mas em chinês não é tão simples.
Se a tia em questão for irmã da mãe, ela é nossa Yi Ma 姨妈, mas somente se ela for a irmã mais velha da nossa mãe. Se for a irmã mais nova, a palavra "tia" (que em português não muda), se torna A-Yi 阿姨. E, caso a mãe seja a mais velha dentre muitas irmãs, números são usados para identificar. A mãe, nesse caso, seria a "tia" Yi 姨 mais velha, e a partir daí teríamos a Segunda Yi 二姨,Terceira Yi 三姨, etc., ou seja, ao falarmos a palavra "tia" em chinês, sabemos exatamente de quem se trata: se é a irmã mais velha ou mais nova da nossa mãe, ou, inclusive, se nossa mãe é a mais velha de todas.
Para as irmãs dos pais, as palavras mudam completamente. A irmã mais velha do pai (que também seria só "tia" em português), é nossa Gu Ma 姑妈, enquanto a irmã mais nova é nossa Gu Gu 姑姑.
A paavra "tia" em português não traz tudo isso de informação.
Outro exemplo:
"Tio", a mesma coisa. Certo? Em português, pode significar qualquer um dos irmãos de qualquer um dos nossos pais. Mas, em chinês, tudo é diferente.
O irmãos mais velho do nosso pai é nosso Bo Bo 伯伯, e o irmãos mais novo é nosso Shu Shu 叔叔. Os irmãos da nossa mãe são todos nossos Jiu jiu 舅舅.
Lembrando que, todas essas palavras se referem somente aos irmãos e irmãs do pai e da mãe. Os esposos e esposas desses tios e tias, em mandarim, também seguem a mesma regra: são palavras diferentes com as quais nós conseguimos identificar exatamente de quem se trata, se é a nossa tia porque é casada com o irmão mais velho do nosso pai, ou com o irmão mais novo do nosso pai, etc.
Enquanto compartilhavam os mesmos ambientes nesse grande Pátio antigo, chineses desenvolveram uma forma diferente de entender o conceito de "família". Ao ser criado em um ambiente cercado por tios, tias, primos, primas e famílias estendidas, o respeito e a consideração pelos mais velhos era inegociável e igual para todos.
É engraçado e difícil de imaginar, mas quando o assunto era "opinar" na sua vida, suas tias e tios tinham bastante autoridade e influência.
Na modernidade, essa dinâmica muda (e muito). Mas a China de hoje continua sendo uma construção de milhares de anos de história.
Assuntos que no Brasil seriam tratados no âmbito pessoal e, no máximo, com algum dos pais, aqui na China acabam envolvendo muito mais gente, não só pelo senso de autoridade que os chineses têm com os membros mais velhos da família, mas pelo respeito que aprenderam a ter desde cedo.