O Apocalipse chinês

O Apocalipse chinês

Por
Calebe Guerra
em
26/9/2022

O Ocidente é rico em literatura apocalíptica. Dos livros ao cinema, a cultura pop das últimas décadas tem explorado - com sucesso - o "dia do julgamento final" como modelo para criar histórias que são contadas no mundo todo e rendem bilhões de dólares.

Mas na China o conteúdo é diferente. Filmes de histórias como Mad Max, Independence Day e 2012 não fazem parte do repertório de roteiros criados nos últimos anos.

Liu Cixin 刘慈欣, o mais famoso e respeitado escritor de ficção científica na China, disse que “na ficção científica chinesa, civilizações extraterrestres foram geralmente imaginadas como benevolentes e incríveis. Para despertar "o contrariador" de dentro de mim, eu decidi imaginar o pior cenário possível”. Assim sendo, em seu livro O Problema dos Três Corpos, Liu imagina um mundo a ser invadido por uma civilização alienígena que está em colapso. Mas, mesmo indo contra a corrente, Liu afirma que se houver na China literatura apocalíptica, ele desconhece.

Liu Cixin, escritor chinês

Diferentemente do Ocidente com sua tendência de imaginar cruzamentos de relações intergalácticas como pivô do apocalipse, a China carece de tal panorama cultural - justamente porque carece de crenças sobre um dia onde tudo terminará.

E um dos motivos pelos quais os chineses não escrevem ficção sobre a premissa de um dia onde o mundo enfrenta sua destruição completa envolve religião: A China não segue a tradição judaico-cristã que reconta várias vezes a história de uma ruptura natural que dá início ao apocalipse como julgamento da história. Essa tradição tem a tendência de ser interpretada com uma visão linear da história, onde há o começo, o meio e, inevitavelmente, o fim.

Profetizar destruição como fim da ordem social é característica nossa. Para os chineses, que desde os Analectos de Confúcio têm harmonia e equilíbrio como únicas constantes em uma visão circular da história onde tudo se renova em ciclos intermináveis de sucessão de poder e reestruturação da ordem, o apocalipse como um momento na história onde tudo se perderá, é uma história sem graça.

O taoísmo, filosofia que nasce na China e é usada por todas as escolas de pensamento que se desenvolveram por lá, ensina que Tao 道 (caminho) é constante e sua única direção é em volta de si mesmo. A certeza da história humana é, portanto, que ela continua sendo amparada pela convicção do equilíbrio que o mundo natural (e até mesmo os deuses) desejam, e não pela necessidade da destruição completa para que haja renovação.

A ordem natural do universo, do mundo e dos humanos é a integração com o todo.

Ideograma "tao" em formas antigas · Henrique Eike

Du Fu 杜甫, um dos mais aclamados poetas da Dinastia Tang, descreve perfeitamente essa imagem em A Esperança da Primavera. Sua cidade, Chang’an 长安, capital da dinastia, foi completamente destruída pela Rebelião de An Lushan, causando milhões de mortes e trazendo o caos. Tendo em vista o colapso total da sociedade, Du Fu escreve que “o país está estilhaçado, mas as montanhas e os rios permanecem”.


Montanhas, rios, árvores e águas correntes evocam a natureza regenerativa da destruição, não o fim. Enquanto seres humanos lutam e se destroem, a natureza (e até mesmo deuses e seres imortais) não trabalham para puni-los, mas sim para provê-los recriá-los.

Imagem da capa: Artista Ze Pan · ARTSTATION