O Ocidente é rico em literatura apocalíptica. Dos livros ao cinema, a cultura pop das últimas décadas tem explorado - com sucesso - o "dia do julgamento final" como modelo para criar histórias que são contadas no mundo todo e rendem bilhões de dólares.
Mas na China o conteúdo é diferente. Filmes de histórias como Mad Max, Independence Day e 2012 não fazem parte do repertório de roteiros criados nos últimos anos.
Liu Cixin 刘慈欣, o mais famoso e respeitado escritor de ficção científica na China, disse que “na ficção científica chinesa, civilizações extraterrestres foram geralmente imaginadas como benevolentes e incríveis. Para despertar "o contrariador" de dentro de mim, eu decidi imaginar o pior cenário possível”. Assim sendo, em seu livro O Problema dos Três Corpos, Liu imagina um mundo a ser invadido por uma civilização alienígena que está em colapso. Mas, mesmo indo contra a corrente, Liu afirma que se houver na China literatura apocalíptica, ele desconhece.
Diferentemente do Ocidente com sua tendência de imaginar cruzamentos de relações intergalácticas como pivô do apocalipse, a China carece de tal panorama cultural - justamente porque carece de crenças sobre um dia onde tudo terminará.
E um dos motivos pelos quais os chineses não escrevem ficção sobre a premissa de um dia onde o mundo enfrenta sua destruição completa envolve religião: A China não segue a tradição judaico-cristã que reconta várias vezes a história de uma ruptura natural que dá início ao apocalipse como julgamento da história. Essa tradição tem a tendência de ser interpretada com uma visão linear da história, onde há o começo, o meio e, inevitavelmente, o fim.
Profetizar destruição como fim da ordem social é característica nossa. Para os chineses, que desde os Analectos de Confúcio têm harmonia e equilíbrio como únicas constantes em uma visão circular da história onde tudo se renova em ciclos intermináveis de sucessão de poder e reestruturação da ordem, o apocalipse como um momento na história onde tudo se perderá, é uma história sem graça.
O taoísmo, filosofia que nasce na China e é usada por todas as escolas de pensamento que se desenvolveram por lá, ensina que Tao 道 (caminho) é constante e sua única direção é em volta de si mesmo. A certeza da história humana é, portanto, que ela continua sendo amparada pela convicção do equilíbrio que o mundo natural (e até mesmo os deuses) desejam, e não pela necessidade da destruição completa para que haja renovação.
A ordem natural do universo, do mundo e dos humanos é a integração com o todo.
Du Fu 杜甫, um dos mais aclamados poetas da Dinastia Tang, descreve perfeitamente essa imagem em A Esperança da Primavera. Sua cidade, Chang’an 长安, capital da dinastia, foi completamente destruída pela Rebelião de An Lushan, causando milhões de mortes e trazendo o caos. Tendo em vista o colapso total da sociedade, Du Fu escreve que “o país está estilhaçado, mas as montanhas e os rios permanecem”.
Montanhas, rios, árvores e águas correntes evocam a natureza regenerativa da destruição, não o fim. Enquanto seres humanos lutam e se destroem, a natureza (e até mesmo deuses e seres imortais) não trabalham para puni-los, mas sim para provê-los recriá-los.
Imagem da capa: Artista Ze Pan · ARTSTATION