Já falamos aqui sobre o Baijiu 白酒, bebida alcóolica chinesa também conhecida como “dinamite numa garrafa”, “soco na boca” e (o mais importante na história de hoje) “lubrificante para se fazer negócios na China”. E o uso desse “lubrificante social” salvou mais de uma vida durante o famoso Banquete de Hongmen 鸿门宴 (ou Banquete do Portão do Ganso), em 206 a.c.
A Dinastia Qin 秦朝 (221-206a.c.) havia durado muito pouco e logo após seu declino, generais de diferentes estados vassalos ao Império estavam em queda de braço para decidir quem substituiria o antigo Imperador, tornando-se o próximo a liderar a China. Os dois nomes favoritos ao cargo eram os de Liu Bang 刘邦 e Xiang Yu 项羽.
Liu Bang e Xiang Yu eram generais e líderes proeminentes que lutaram contra a Dinastia Qin em um processo histórico que prometia unificar todos os estados vassalos que haviam sofrido baixo à tirania do Imperador. Ambos com grandes exércitos sob seu comando, aguardavam ansiosos os próximos eventos que decidiriam sobre o próximo líder da China.
Após muita expectativa (e também fofoca) entre os comandantes conselheiros dos dois exércitos inimigos, Xiang Yu ouve dizer que Liu Bang está prestes a se declarar Duque em Guangzhou, um grande pedaço de terra estratégica, e essa informação o enfureceu e o fez pensar em um plano para se livrar de vez de Liu Bang.
Após ficar sabendo que seus planos foram revelados, Liu Bang, por sua vez, decide arranjar uma visita ao palácio de Xiang Yu para acalmar os ânimos e convencê-lo de que tudo não passava de mexericos de comandantes de baixo escalão sedentos por sangue.
No dia seguinte, então, Liu Bang e mais cem de seus homens chegam a Hongmen, onde Xiang Yu havia preparado um banquete para entretê-lo e, quem sabe, selar um contrato de paz entre os dois. Mas os ânimos estavam exaltados pairavam desconfianças nos dois lados.
Após um pedido formal de desculpas da Parte de Liu, ele é “aceito” no banquete quando o general Xiang brinda um copo de Baijiu com ele, ritual importante para qualquer tipo de negócios na China.
Todavia, um dos comandantes conselheiros do general Xiang deu sinais a noite toda para que ele não deixasse passar a oportunidade de matar o convidado Liu Bang durante o banquete. E após ser ignorado pelo general, decidiu tomar o poder de decisão nas próprias mãos ao dizer que "somente brindar Baijiu não era suficiente", pois o convidado era por demais "especial". Ofereceu-se, então, para fazer o ritual da dança da espada, em honra a Liu Bang.
Tudo não passava, claro, de uma desculpa para desembainhar a espada e cortar a cabeça do inimigo. Mas, feito depois de um brinde de Baijiu, quem poderia se opor? A dança da espada, porém, se tornou um evento um tanto quanto engraçado com um plot twist inusitado: um dos comandantes conselheiros de Liu Bang que estava presente no banquete, percebendo a intenção do inimigo, levantou-se também com sua espada para acompanhá-lo na “dança”.
O que se seguiu foi uma das tentativas de assassinato mais teatrais da história da China. O livro de história Shi Ji 史记 conta que ambos dançavam como dois pássaros abrindo e fechando suas asas: um tentando achar a melhor oportunidade para matar a Liu Bang, que estava sentado tomando seu Baijiu, e o outro o protegendo.
Do lado de fora do banquete estava um dos conselheiros mais fiéis de Liu Bang, um homem chamado Fan Kuai 樊哙. Ao ouvir o que estava acontecendo dentro do recinto, Fan se enche de bravura e senso de lealdade ao general Liu, toma sua espada e um escudo e entra de súbito no banquete atacando os soldados da porta e abrindo caminho até o general Xiang Yu.
Foi então que a dança teatral (vulgarmente conhecida também como "óbvia tentativa de assassinato") é interrompida. Xiang Yu se admira da coragem do fiel comandante Fan Kuai e, usando a única forma de apaziguar os ânimos que existe, oferece um copo de Baijiu a ele.
Após beber, o general Xiang oferece ainda carne de porco, que Fan Kuai come em pé cortando os pedaços com sua espada, ainda demonstrando estar pronto para o combate e, se preciso, morrer pelo seu líder. Xiang Yu, ainda impressionado, pergunta se ele conseguiria tomar mais Baijiu. A resposta do comandante Fan?
“Não tenho medo nem de morrer, como posso recusar mais um copo de Baijiu?”, e procede falando a favor do seu líder, Liu Bang, apaziguando o ânimo entre todos.
Xiang Yu ficou sem resposta.
Não se sabe até hoje se foi a coragem de Fan Kuai de morrer pelo seu mestre ou de beber mais Baijiu que salvou a vida de Liu Bang.
Agora com o famoso Baijiu servindo para conter ânimos aflorados, Liu Bang finge que sai para usar o banheiro e consegue fugir para a segurança do seu exército. Mas somente desaparecer não era suficiente.
Ele decide deixar um pingente de esmeralda esculpida como forma de agradecimento pelo banquete (onde quase foi assassinado) nas mãos de um comandante para que entregasse a Xiang Yu.
O que esse comandante disse ao General Xiang sobre o sumiço do convidado foi que seu mestre “por não ter tomado Baijiu o suficiente, foi embora sem se despedir”.
Baijiu foi usado, portanto, para salvar um punhado de vidas naquele dia. Tanto por quem o tomou e impressionou a todos por tê-lo feito, quanto como desculpa para sair correndo sem se despedir, já que não tomar Baijiu oferecido pelo anfitrião era considerado extremamente vergonhoso, uma quase imperdoável falta de etiqueta.
Até hoje em dia quando alguém desconfia das reais intenções por trás de um convite para festejar, usa-se "Banquete de Hongmen" como forma de satirizar o assunto.
Um brinde à todas as vidas já salvas pelo Baijiu e por todos os encontros sociais inconvenientes que ele ainda vai ajudar a apaziguar!
Texto: Calebe Guerra