Primavera, Verão, Outono, Inverno e…Primavera
봄 여름 가을 겨울 그리고 봄 – Bom yeoreum gaeul gyeoul geurigo bom – Primavera, Verão, Outono, Inverno e…Primavera (2003)

봄 여름 가을 겨울 그리고 봄

Primavera, Verão, Outono, Inverno e…Primavera

de Kim Ki-duk
Por
Daniel Flores
em
22/6/2023

No budismo o Samsara se refere ao ciclo de nascimento, morte e renascimento que todos os seres sencientes experimentam. É o processo contínuo de perambulação por vários estados de existência, dirigido pela força do karma – a interligação da ação e consequência. Existem três aspectos interconectados: sofrimento, impermanência e ausência de ego. E o ciclo é perpetuado pelos desejos, apegos e ilusões que detemos em função da ignorância em relação à verdadeira natureza da realidade.

Parece difícil de assimilar, e de fato, praticantes do budismo dedicam sua vida ao entendimento da existência, e em último estágio, à quebra do ciclo de sofrimento. Talvez por isso – com interesse e olhar quase pedagógicos acerca do Samsara na prática – já satisfaça assistir ao longa sul-coreano “Primavera, Verão, Outono, Inverno e…Primavera”.

O filme se passa na solitude de um templo budista flutuante imerso por uma paisagem serena e bucólica. O templo insular serve como um microcosmo do mundo – uma representação simbólica do caráter cíclico do Samsara. À medida que as estações mudam, também mudam os estados emocionais e espirituais das personagens que ali residem, refletindo a impermanência e o fluxo inerentes à vida.

Na história, duas personagens personificam a alma humana atravessando o Samsara. Um monge e um garoto que, apesar de ativo e perspicaz, aparenta ter inclinação espiritual menos apurada que a de seu mestre (algo irá ser demonstrado ao longo da narrativa). Através da passagem do tempo e das vicissitudes da experiência, ambos passarão por transformações, espelhando a jornada de todos os seres presos no ciclo da existência. 

O monge e o garoto incorporam os estágios arquetípicos da experiência humana, e as estações da natureza servem de analogia aos fenômenos cíclicos: da exuberância jovial e inocência da primavera aos tormentos do desejo vinculado ao apego no verão. Da introspecção melancólica do outono à austeridade e sabedoria no inverno.

“Primavera” não se trata, porém, de um estudo aprofundado de personagem (ainda que percebamos e nos identifiquemos com suas motivações e sabotadores). Mais oportuno é apreciar o filme de maneira holística. A inter-relação das coisas e como tudo se complementa na história: o homem, os animais, os elementos terra, água, fogo, ar, o ciclo das estações, e a passagem do tempo.

O próprio templo flutuante assume papel simbólico, representando a impermanência e a interconexão de todas as coisas. Assim como o templo permanece aparentemente estanque num rio em constante fluxo, ele passa por transformação e adaptação. Da mesma forma, a vida ali presente persiste em constante mudança, enquanto permanece firmemente entrelaçada no continuum do Samsara. A perpetuidade cíclica do templo serve como um lembrete da natureza transitória de todos os fenômenos e da necessidade de abraçar, segundo o budismo, a impermanência como parte integrante da experiência humana

É quase impossível assistir à “Primavera" e não nos sensibilizarmos a recapitular nossa própria mortalidade à luz da visão budista da dança incessante do Samsara. E também perceber como é difícil quebrar o ciclo do karma através da renúncia aos desejos, da autotransformação e do rompimento de padrões.

Apesar de sensível e contemplativo, o filme transcorre com exitoso dinamismo. Ki-duk nos lembra que o cinema é uma mídia visual capaz de transcender à barreiras linguísticas e nos conectar utilizando a arte da fotografia e a estética da natureza como plano de fundo. Prova de que um filme pode ser instigante até mesmo em seu encanto silencioso. Experiência sutil e por vezes dolorosa, mas nunca monótona.

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